09 de outubro de 2024
24 de dezembro de 2019
De ajudante de drogaria a rei das farmácias
O Brasil pode não ser mais o país do futebol, mas continua no topo quando o assunto são farmácias. O país tem 78.358 drogarias, número que cresce, em média, 3% ao ano, com crise ou sem crise. Temos uma farmácia para cada 2.800 brasileiros, taxa quase duas vezes maior do que a dos Estados Unidos. Ao contrário do que acontece lá, porém, onde grandes redes, como Walgreens e CVS, concentram quase 70% do mercado, a maioria das farmácias brasileiras não tem bandeira. Mas o mercado está mudando.
Em março, a maior rede do país, a RaiaDrogasil (agora RD), comprou a rede paulistana Onofre, formando um grupo que chega a 1.875 unidades. A concentração deve continuar crescendo, mas os pequenos contra-atacam, num movimento tão discreto quanto resoluto. Um número cada vez maior de unidades tem se unido em associações para negociar com fornecedores e ter acesso a ferramentas de gestão. Atualmente, 14.250 farmácias no Brasil estão reunidas em associações. Juntas, faturam 18,7 bilhões de reais por ano, ou 17% do mercado nacional.
À frente do movimento das associações está o paulista Edison Tamascia, presidente da Febrafar, federação que reúne associações de farmácias de todo o Brasil. Tamascia nasceu há 58 anos, em Paranapuã, cidade paulista com 3.800 habitantes, e estudou somente até os 10 anos de idade. Começou a trabalhar em farmácia aos 14, lavando recipientes e seringas de vidro. Aos 30, deixou uma gerência na RD para comprar sua primeira drogaria em Piracicaba.
A experiência mostrou-lhe que os donos de farmácias precisam de ajuda para não sucumbir. Em 1996, ele criou uma associação em Piracicaba. Em 2000, fundou a Febrafar, entidade que hoje reúne 59 associações de farmácias independentes — cerca de um terço do total de associações brasileiras. Presidida por Tamascia desde sua fundação, a Febrafar tem sob seu guarda-chuva 9.900 drogarias, que, juntas, faturaram 12,3 bilhões de reais em 2018.
Tamascia tem uma função dupla como presidente da Febrafar e empresário. Em 2012, apostando na venda de genéricos, ele criou a rede de farmácias Super Popular, hoje com 35 lojas no interior de São Paulo e Minas Gerais. Em 2014, viu a oportunidade para mais um negócio e montou a Farmarcas, empresa criada para gerir associações — em geral, algumas dezenas de farmácias municipais que se organizam. Hoje, a Farmarcas gere nove associações, com 940 farmácias, que faturaram 2,4 bilhões de reais em 2018.
Separado apenas por um corredor, o escritório da Farmarcas se mistura com o quartel-general da Febrafar, instalado num prédio na Avenida Paulista. Tamascia chega para trabalhar todos os dias às 6h30. Costuma interromper reuniões para cumprimentar quem passa pelo corredor, e tem um armário cheio de chocolates para funcionários e convidados. “Olho para o mercado sem o viés da vitimização. É normal o empreendedor achar que na região dele as coisas são mais difíceis, que o concorrente é mais agressivo. A verdade é que há desafios e oportunidades para todos”, diz.
As farmácias reunidas em associações estão, geralmente, em pequenos municípios do interior e em regiões periféricas das grandes cidades. São locais fora do foco das grandes redes. A Febrafar consegue de 5% a 10% de vantagem na negociação com os fornecedores, entre os quais estão fabricantes de remédios como Hypera Pharma e Sandoz. As farmácias reunidas em associações ganham todas o mesmo nome, como se fossem uma franquia, mas cada uma tem um dono e não há pagamento de royalties.
A associação ajuda esse comerciante a acompanhar os números do caixa. E a Febrafar fornece ferramentas de gestão do negócio e um programa de fidelidade aos clientes. Em troca, as farmácias pagam uma taxa às suas associações (que varia de acordo com a entidade). As associações pagam 2.600 reais por mês à Febrafar, que também recebe incentivos da indústria. A entidade não tem fins lucrativos. O comerciante Eduardo Lobato Campos de Oliveira, de 30 anos, é um associado típico. Trabalha desde os 12 anos na farmácia fundada pelos tios na cidade mineira de Pitangui, de 25.000 habitantes. “Antes de nos associarmos, a gestão era na base do achismo. Fazíamos registro de vendas até no saco de pão”, diz Oliveira.
Fundada em 1989, a unidade entrou para uma associação em 2008, associou-se à Febrafar e usa também os serviços da Farmarcas. Com a mudança na gestão, a família abriu mais oito lojas na região. Antes, a loja em Pitangui faturava 10.000 reais por mês, hoje as nove lojas da família têm receita mensal de 3 milhões de reais. As unidades filiadas à Febrafar faturam, em média, 130.000 mensais — é mais do que a média das farmacinhas, mas é bem menos do que os cerca de 700.000 mensais de cada unidade da RD.
O modelo das associações tem proliferado em setores como os de pet shops, papelarias e lojas de material de construção. Em comum, esses setores têm a presença de grandes empresas, como a Leroy Merlin no material de construção ou o Carrefour e o Pão de Açúcar nos mercados. Lá fora, há associações de farmácias em países como Estados Unidos, Canadá, Itália e Espanha. No Brasil, as farmácias associadas começaram a virar um concorrente de peso para as grandes redes nos últimos dois a três anos, por movimentos paralelos.
Em 2017, a Anvisa acelerou a liberação de novos genéricos, ampliando a oferta e a disputa pelo consumidor da classe C. Além disso, as grandes redes passaram a olhar com mais atenção para o interior do -país e para as regiões metropolitanas, e encontraram concorrentes já estabelecidos. Pelas contas da Abrafarma, associação que reúne as maiores redes do setor, há no país cerca de 1.000 cidades que poderiam ter, mas ainda não têm, lojas das grandes redes.
“Todos querem disputar o público AB, mas não existe público AB para todos”, diz Julio Mottin Neto, presidente da Panvel, rede de drogarias com 418 lojas que tem forte presença no Rio Grande do Sul. De 2005 a 2018, o número de farmácias no país cresceu 73%. O motor desse movimento é o envelhecimento da população. A cada ano, 1 milhão de brasileiros rompem a barreira dos 60 anos. Uma competição mais acirrada entre os grandes grupos e as fortalecidas associações, portanto, é inevitável.
As grandes redes seguem crescendo, mas com foco cada vez maior em rentabilidade. A cearense Pague Menos, por exemplo, chegou a abrir 170 lojas em 2017. Em 2018, baixou para 141. “Apostamos que o setor vai continuar crescendo, e vamos continuar a abrir lojas. Mas a escolha dos locais tem de ser mais criteriosa para não haver canibalização”, afirma Luiz Renato Novais, vice-presidente da rede. Para garantir a rentabilidade do negócio, a Pague Menos tem reduzido o número de funcionários por loja.
A Extrafarma, do Grupo Ultra, está em situação semelhante. Forte no Pará e com 433 lojas pelo país, a rede diminuiu o ritmo de aberturas e fechou 2018 com resultado operacional negativo de 47 milhões de reais. A rede busca melhorar sua operação logística e a gestão de estoques para ganhar em produtividade.
Quem segue abrindo lojas mira novas regiões e aposta em tecnologia. Com uma cadeia de 1.300 unidades, o grupo DPSP, que reúne Drogaria São Paulo e Pacheco, tem aberto uma média de 100 lojas por ano e pretende manter o ritmo. Entre as estratégias para lidar com a maior concorrência estão reformar as unidades e criar marca própria para produtos como vitaminas e higiene. “A farmácia virou um local de conveniência”, diz Marcelo Doll, presidente da DPSP.
Outra que mantém crescimento constante é a líder, RD, que abriu 240 lojas em 2018 e pretende manter esse ritmo em 2019. A rede faturou 15,5 bilhões em 2018. Uma das principais estratégias da RD é oferecer cuidados de saúde em suas unidades. Uma recente decisão do governo permitiu às drogarias brasileiras oferecer vacinação, o que deve dar fôlego à estratégia. “Todo mundo vai mais vezes à farmácia do que ao médico ou ao hospital. É uma possibilidade para melhorar o acesso a cuidados de saúde primários no país”, diz Marcílio Pousada, presidente da RD. Outra meta é ampliar o varejo online, que hoje responde por apenas 8,5% das vendas do grupo.
A integração entre o varejo físico e o comércio eletrônico deve ser a nova frente de batalha entre as grandes redes e as associações. Com mais poder de investimento, as redes tendem a levar vantagem. Nos Estados Unidos, a varejista online Amazon pagou 1 bilhão de dólares no ano passado pela PillPack, empresa que vende remédios pela internet. Por aqui, a compra de remédios online ainda é tímida, mas as grandes companhias já abriram o olho para isso.
A Onofre, comprada pela RD, é pioneira no setor e 45% de suas vendas são feitas pela internet. Na visão do rei das farmacinhas, as vendas eletrônicas não estão com nada. “O futuro da farmácia é zero e-commerce. Explico: na maioria das vezes, o cliente precisa do remédio na hora. Um grande número de medicamentos exige entrega de receita, e há farmácias em cada esquina. Por que o cliente vai comprar pela internet?”, diz Tamascia.
“As farmácias associadas têm dificuldade de integrar canais e estoque para ter uma operação online, e por isso não incentivam a mudança. Esse é o principal desafio delas hoje”, afirma Alexandre van Beek, sócio-diretor da consultoria de varejo GS&Consult. A Febrafar posicionou suas tropas no chão. Agora é torcer para o inimigo não atacar pelo ar.
Fonte: Exame